segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Da prova exclusivamente testemunhal no Direito Previdenciário e a inconstitucionalidade do Artigo 55, § 3º da lei nº 8.213/91

A especialidade do Direito Previdenciário, tanto na órbita material quanto processual, revela institutos peculiares e autônomos, pelos quais se sobressai a independência de qualquer outro ramo do Direito.
Tal independência deságua na elaboração de normas previdenciárias colidentes com normas processuais e até constitucionais.
O polêmico § 3º do artigo 55 da Lei nº 8.213/91 , dispõe expressamente que é inadmissível a comprovação do tempo de serviço mediante única e exclusiva prova testemunhal, e que esta somente será válida se houver prova material que lhe dê suporte.
Ocorre que, ao se entender que a lei estabelece uma restrição à prova testemunhal (mesmo se produzida em juízo), direcionada contra a Previdência Social e destinada à obtenção de benefícios, teríamos que concluir por sua inconstitucionalidade.
Com efeito, o art. 5º, inciso LV, da Lei Maior assegura "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo (...) o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
A bem da verdade, não seria razoável concluir que a legislação previdenciária derrogou o art. 332 do Código de Processo Civil, segundo o qual "Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa" - retirando da livre convicção do juiz a prova testemunhal exatamente em situações onde, costumeiramente, esta é a única possível.
Não se pode olvidar, ainda, que, nos termos do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil - LICC, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige. Assim, a Lei Previdenciária, no concernente à prova, não poderá receber interpretação que implique em dificultar o acesso do trabalhador aos benefícios previdenciários. Ao contrário, deve ser interpretada no sentido de que facilitou o acesso, ao prever a prova do exercício de sua atividade através da simples justificação, seja ela judicial ou administrativa, que deve ser aceita pela Autarquia.
Não obstante opiniões em sentido contrário, a lei não poderá impedir que se prove, em juízo, por via ordinária, o exercício de atividade exclusivamente por meio de testemunhas, para fins de obtenção de benefício previdenciário; caso ela seja no sentido de restringir a prova exclusivamente testemunhal, seu comando há de ser afastado, por inconstitucional.
É cediço que, muitas vezes, a única maneira possível de comprovação de tempo de serviço é através de testemunhas, não podendo a lei, o regulamento, bem como o juízo, em processo judicial, preterir este tipo de prova, sob pena de estar desprezando o acesso do segurado ao Judiciário.
Ora, as provas têm por única finalidade a apuração da verdade, e se o segurado possui testemunhas hábeis para provar o alegado, esta prova deve ser colhida e valorada, a teor do próprio art. 332 do CPC já mencionado, sendo incabível que legislação previdenciária, em total desacordo com o Código de Processo Civil, preveja sua inadmissibilidade.
A inadmissibilidade da prova exclusivamente testemunhal viola o princípio do devido processo legal, que pressupõe um juiz imparcial e independente, que haure sua convicção dos elementos de prova produzidos no curso da ação, além de atentar contra a regra do artigo 131 do Código de Processo Civil, segundo a qual o juiz apreciará livremente a prova.
Mas a inconstitucionalidade do artigo 55, § 3º da Lei nº 8.213/91 se revela, pelo fato de que o artigo 5º, inciso LVI da Carta Magna, admite quaisquer provas, desde que não obtidas por meios ilícitos. Assim, válida é a prova testemunhal, que não pode ter sua eficácia limitada por não vir acompanhada de início de prova documental, sob pena de cercear-se o poder do juiz, relativamente à busca da verdade e sua convicção quanto a ela .
Mas afinal, qual a melhor solução a ser adotada?
A solução parece estar afeta a questão da hierarquia das normas e da supremacia da Constituição Federal sobre as normas infraconstitucionais.
Segundo José Afonso da Silva, nossa Carta Política constitui-se na lei fundamental e suprema do país e, por conseguinte, “Toda a autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competência governamentais” .
E mais: Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal .
Isso significa que a Constituição Federal é o elemento principal no ordenamento jurídico pátrio, que tem o condão de dar validade as normas que se encontram abaixo na hierarquia.
A par dessas considerações, a norma constante do inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal, insurge-se como verdadeira pedra angular do sistema processual brasileiro, no tocante às provas. Pela redação do citado dispositivo, são inadmissíveis no processo as provas que forem obtidas por meios ilícitos.
Se, portanto, a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos constitui-se em um direito fundamental daquele que participa de um processo judicial ou administrativo, também temos que, de outra forma, constitui-se no direito de produzir toda e qualquer prova lícita para a defesa de seu direito.
Assim sendo, uma norma infraconstitucional, consubstanciada por um dispositivo de uma lei ordinária, ou, ainda, de um decreto, não pode, de modo algum, restringir o alcance da norma constitucional.
O inciso LIV do artigo 5º prevê, de forma taxativa, que ninguém poderá ser privado de sua liberdade ou bens sem o devido processo legal. Esse devido processo pressupõe, de um lado, o resguardo quanto às provas obtidas por meios ilícitos e, por outro lado, a possibilidade de produção de provas lícitas, com o desiderato de garantir o bem jurídico pretendido, seja a aposentadoria, seja o reconhecimento de um tempo de serviço efetivamente trabalhado para fins de averbação, dentre outros.
Em outras palavras, o artigo 55, § 3º da Lei n° 8.213/91, artigo 108 da mesma lei e outros similares, são flagrantemente inconstitucionais, pois restringem a liberdade de produção de prova no processo judicial ou administrativo, na medida em que a única limitação constitucional, se refere a produção de provas obtidas por meios ilícitos.
De outra banda, cite-se que a Seguridade Social tem como princípio de interpretação, a regra consubstanciada no brocardo latino “in dubio pro misero”. Neste sentido, Wladimir Novaes Martinez afirma que “Ocorrendo a dúvida realmente, e se ela refere-se à proteção, afirma-se como conclusão, deve ser resolvida a favor do beneficiário” .
Ou seja, no processo previdenciário, o magistrado deve atentar para as condições do postulante, sobretudo aqueles que laboraram no meio rural, onde se impera o informalismo e a sujeição do trabalhador aos ditames patronais, ocasionando a incapacidade daquele em obter registro ou qualquer prova material de seu trabalho.
Se há impossibilidade de reunir um início de prova material, paira a dúvida, devendo, em prol do trabalhador, admitir-se a prova exclusivamente testemunhal, afastando, totalmente, as normas infraconstitucionais que restringem tal prova, quando produzida sozinha.
A admissão da prova exclusivamente testemunhal no processo previdenciário vem, portanto, harmonizar os princípios exarados na Constituição Federal, bem como os Princípios Gerais do Direito, a fim de produzir uma Justiça realmente genuína ao trabalhador brasileiro, sem manchas de juristas intelectualóides, que aplicam a norma jurídica destoada da realidade social do Brasil.
Portanto, da ótica do Direito Processual, é incabível a norma limitadora, por ferir o moderno princípio do acesso ao Judiciário, bem como a norma constante no artigo 131 do Código de Processo Civil, que consagrou no sistema processual civil brasileiro o princípio da persuasão racional, pela qual o magistrado poderá apreciar livremente a prova, devendo indicar na sentença os motivos que lhe formaram o convencimento.
E pela própria natureza do Direito Previdenciário, esta norma deve também ser recusada, pois ofende princípios do direito social, além de aumentar o descrédito do cidadão para com as Instituições postas à sua disposição, como no presente caso a Previdência Social.
Conclui-se, assim, que é totalmente pertinente a produção de prova exclusivamente testemunhal, seja no processo judiciário, seja no processo administrativo, ao passo que as normas constantes da Lei n.° 8.213/91, do Decreto n.° 3.048/99 e outros diplomas previdenciários, que vedem a produção de prova exclusivamente testemunhal, são flagrantemente inconstitucionais, ante a interpretação do artigo 5.º, inciso LVI da Constituição Federal, que faz-nos concluir que todos os meios de prova são admitidos para a prova de fato constitutivo de direito, desde que lícitas e não obtidas por meios ilícitos.
Publicado em Outubro de 2005
Ailton A. Tipó Laurindo
é advogado e aluno do Curso de Mestrado em Direito Previdenciário pela PUC-SP.
Fonte: IAPE